Estudo internacional aponta que os castigos físicos, mesmo de forma moderada, podem prejudicar o desenvolvimento da criança, afetando a autoestima e a criatividade. Especialistas dizem ser fundamental insistir no caminho do diálogo
Tapa, beliscão ou chinelada. A maioria dos pais já teve que apelar para castigos físicos na hora de impor limites aos filhos. Entretanto, uma pesquisa da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) divulgada recentemente condena o uso da força como forma de educação. Intitulado Relatório sobre o castigo corporal e os direitos humanos de crianças e adolescentes 2009, o estudo afirma que, mesmo de forma moderada, medidas desse tipo podem ser prejudiciais para o desenvolvimento das crianças. Segundo os especialistas, os malefícios do castigo vão desde a diminuição da criatividade até a baixa da autoestima. O coordenador no Brasil do Programa de Cidadania Adolescente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Mario Volpi, acredita que os castigos físicos são uma forma de violência doméstica. “O castigo físico, mesmo em pequena escala, gera impactos negativos na autoestima e na autonomia da criança”, diz. Para ele, a solução está no diálogo. “O discurso de que bater é necessário é egoísta, já que faz bem apenas para o adulto, que não precisa dedicar muito mais tempo e esforço conversando com a criança. Batendo, ele acha uma solução muito mais rápida e falsamente eficaz”, completa. Outra organização que atesta os malefícios dos castigos físicos para os pequenos é a organização não governamental sueca Save the Children. De acordo com a oficial para a América Latina e o Caribe da entidade, Márcia Oliveira, a medida pode transmitir mensagens de violência. “Qualquer tipo de atitude violenta transmite uma mensagem errada. Quando a criança vê os pais resolvendo as questões com um tapa ou uma chinelada, ela entende que essa é uma maneira válida de lidar com conflitos e carrega isso para outras áreas de vida”, explica. Márcia lembra ainda que, em alguns casos, o uso da força pode diminuir a criatividade e a curiosidade das crianças. “Explorar o desconhecido é muito importante para o desenvolvimento social e motor de qualquer criança. Se ela fica curiosa, mexe em algo que não deve e acaba apanhando por isso, logo se sentirá desestimulada a pesquisar e descobrir o novo, pois teme apanhar novamente. Isso é uma forma de impedir o desenvolvimento pleno”, analisa. Mesmo concordando que o método pode trazer prejuízos, muitos pais acreditam que, eventualmente, um tapa pode ser saudável. Essa é a opinião de Cássia Pacheco, mãe de Victória, 10 anos, e Augusto, 7. Ela acredita que em alguma situações a palmada pode servir para que os filhos percebam a gravidade de seus atos. “Eventualmente, eu acredito que ela tem o seu lugar. O que as pessoas precisam ter em mente é que há certos limites”, afirma a mãe. Para ela o limite é o primeiro tapa. “Se você passa para a segunda ou a terceira palmada, é porque já está extrapolando. É preciso lembrar que você está educando e não descontando a raiva na criança”, diz Cássia, garantindo que só recorre a esse método quando já tentou resolver o problema através do diálogo. “Quando eles me deixam muito nervosa, peço que nem cheguem perto, para evitar que eu perca a cabeça e extrapole”, completa. Marcas psicológicas A assistente social Ludimila de Ávila Pacheco e a promotora de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Leslie Marques de Carvalho, engrossam o time de especialistas que condenam os castigos físicos. “Eles nem sempre deixam marcas no corpo, mas, sem dúvida, deixam marcas psicológicas na pessoa. Essas marcas podem se manifestar de várias maneiras, tanto na infância e adolescência, quanto na fase adulta”, aponta a assistente social. Segundo a promotora da infância, existem várias formas de manifestação desses prejuízos. Em alguns casos, os castigos formam indivíduos que estabelecem relações conflituosas com a sociedade. “Essas relações podem ser a delinquência, o transtorno mental e alguns tipos de compulsividade — como o uso de drogas. Em outros, as manifestações voltam-se principalmente para o próprio indivíduo, como a baixa estima, a excessiva passividade e a timidez exagerada”, explica Leslie. Para elas, a grande falha desse modelo está no fato de que ele não proporciona a construção da capacidade de sentir culpa. “A criança não aprende a se responsabilizar pelos próprios atos, pois este aprendizado pressupõe que o indivíduo possa vivenciar a experiência de ter provocado um dano e, a partir daí, sinta a necessidade e as possibilidades de repará-lo”, completa a promotora. Marina Praia, mãe de João, 6 anos, concorda com as especialistas e diz que a palmada deve ser evitada. Segundo ela, é necessário ter em mente a diferença entre o adulto e a criança. “Nós não podemos esquecer que somos muito mais fortes que eles. Dependendo da situação, bater pode ser uma covardia”, diz. Sobre o filho, ela afirma que nunca precisou usar esse recurso. “Desde pequeno eu sempre procurei conversar e explicar. Talvez até por isso ele seja tão calmo. Nunca precisei bater e espero nunca precisar.” O discurso de que bater é necessário é egoísta, já que faz bem apenas para o adulto, que não precisa dedicar muito mais tempo e esforço conversando com a criança” Mario Volpi, coordenador no Brasil do Programa de Cidadania Adolescente do Unicef Projeto parado na Câmara De acordo com o Relatório sobre o castigo corporal e os direitos humanos de crianças e adolescentes 2009, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), apenas 24 países em todo o mundo possuem leis que proíbem o castigo físico e humilhante, entre eles o Uruguai e a Venezuela. Outros países, como o Canadá e a Nicarágua, mantêm iniciativas de leis para a proibição do castigo físico e da violência doméstica contra crianças, que podem ser aprovadas nos próximos anos. No Brasil, o Projeto de Lei 2654/03 pretende alterar artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código Civil para tornar crime a punição corporal de qualquer intensidade contra menores de 18 anos. O projeto, que ficou conhecido como “Lei da Palmada”, foi aprovado na Câmara dos Deputados pelas Comissões de Educação e Cultura (CEC), Seguridade Social e Família (CSSF) e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Com as decisões, o texto poderia seguir direto para análise do Senado, mas os deputados Neucimar Fraga (PR-ES) e Jair Bolsonaro (PP-RJ) entraram com recursos pedindo que a proposta também seja analisada em plenário da Casa. Assim, desde 2006 o projeto está parado, aguardando a análise dessas solicitações. Autora da proposta, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) pretende apresentar novo projeto de lei e tentar fazer com que ele tramite em caráter conclusivo, ou seja, sem precisar ser votado no plenário da Casa. “Em todas as comissões, ele foi aprovado por unanimidade. Agora, vamos incorporar sugestões que foram dadas durante esse tempo e apresentar uma nova proposta”, comenta a parlamentar. Segundo Maria do Rosário, que é pedagoga e especialista em violência doméstica pelo Laboratório de Estudo da Criança da Universidade de São Paulo (USP), não existem no projeto medidas de intervenção familiar. “O objetivo é conscientizar a população do quão prejudicial pode ser educar com o uso da violência”, completa.
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